quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Harppia Sete: entre o engajamento e a metafísica

Poucos artistas tentaram, numa mesma obra, unir duas das mais importantes temáticas da arte: o sujeito em sua relação com o mundo que o cerca, material; e o sujeito em sua relação com o mundo invisível, transcendente. Sete, álbum lançado pelo Harppia em 1987 é um desses raros exemplos de obra que sai vitoriosa de tal portentoso intento.

O álbum abre com a música Na calada da noite. Na letra, o eu lírico começa a fornecer pistas de que estamos adentrando um mundo de mistério, cheio de neblina e de onde é difícil voltar. Começa o embate entre o concreto e o invisível, o material e o transcendente. Surge, então, a pergunta que aponta para o estado de espírito que o guiará no decorrer de toda a obra:

Por que nós não podemos crer?
Por que nós não podemos fazer?

Entre o crer - a metafísica - e o fazer - o engajamento - o álbum prossegue com a canção Voz da consciência. Nesta canção, o autor conclama a humanidade, a quem como um verdadeiro Victor Hugo chama de irmãos, a uma completa reforma social:

As pessoas têm que entender,
Um dia tem que dar pra no outro receber.

Mais adiante, nesta mesma canção, com impressionante desenvoltura, o eu poético, de repente, se coloca no lugar da própria consciência da coletividade:

Quem voz fala é a sua consciência
Que de tão pesada, dá até dormência

Note- se que ao rimar os termos “consciência” e “dormência” o poeta mostra, além da extrema ousadia na escolha do tema e na posição tomada diante do objeto, possuir grande apreço pelos detalhes formais, afinal, rimar duas palavras com as terminações “ência” requer profundo conhecimento dos recursos estilísticos da sonoridade da língua portuguesa.

Após o auge de sua compaixão pelos desvalidos, exaurido em sua pregação engajada, ele volta a ser tomado por reflexões metafísicas, Magia Negra, a canção que vem depois de Voz da consciência, discorre a respeito de uma sinistra relação entre um homem e entidades malévolas. Observemos que o poeta, mesmo tomado pelo desespero de saber que tais entidades querem matá-lo, não deixa de ignorar a realidade material:

Agora não me resta nada, só desespero
De querer subir na vida a qualquer preço

Para alguém que sabe que está para ser assassinado por entidades do além, a ambição de subir na vida exprime uma profunda fé no futuro.

Misteriosamente, após esta maravilhosa decisão, ele volta os olhos para o cotidiano, o trivial. Em Balada, tudo o que o até então atormentado menestrel deseja é dizer que há muita coisa para ver, bastando apenas ao seu ouvinte ideal olhar e reparar.

De volta ao pólo do engajamento, Guerras traz um impressionante libelo pacifista com versos tão contundentes quanto os de Imagine, de John Lennon. Leiamos:

Qualquer um que seja lúcido
Deveria enxergar
Indo pra nenhum lugar
Para nunca mais voltar

Note o grau de sofisticação da escrita, que realmente exige muita lucidez para ser compreendida, afinal, se a pessoa vai a nenhum lugar, ela permanece no mesmo lugar, e se ela está no mesmo lugar e de lá nunca mais vai voltar, então ela permanecerá realmente no mesmo lugar de início, de onde jamais terá saído. Neste ponto, o Harppia se liga à tradição jazzística iniciada por John Coltrane e o conceito de ouvinte ativo, pois sabemos que um ouvinte passivo jamais seria capaz de compreender o verdadeiro sentido de tal preciosidade.

Neste, que é o ponto alto do disco, surge a música AIDS. Em tal canção, o letrista, como Ajax de Sófocles clama pelos deuses que não se manifestam, se dirige o tempo todo a um Doutor que jamais responde. O desespero do eu lírico, que se inicia com a busca de uma resposta “para toda esta bosta” vai gradualmente aumentando, a tensão dos versos é eletrizante, o escritor, demonstrando absoluto controle do foco narrativo, pula diligentemente do discurso direto para o enigmático discurso indireto-livre. E, como se não bastasse todas essa maestria formal, termina a canção de forma comovente com o grito enternecedor de “ Calma, Doutor”.

O desfecho da magnífica obra Sete não poderia ser mais grandioso: surge a música que dá nome ao álbum. Lembrando aquela famigerada frase, se não pode haver mais poesia depois de Awchvitz, não haverá certamente mais versos que façam qualquer sentido para a raça humana depois de Sete. Pavorosamente onipresentes, povoando céu, terra, água, mar, ar, oceano e casa da tia, as criaturas desfilam sua maldade levando o ouvinte a um estado de total pavor. Esperança, não para nós, diria Kafka, mas estamos diante de um escritor que vai mais longe e nos deixa um alerta: temam sempre, pois eles, os sete, ameaçam a Deus e ao rei.

Podemos concluir que, além de deixar claro seu posicionamento frente a temas atuais como Aids, desigualdade social e guerras e ao mesmo tempo debater-se em intensas experiências com o invisível, o eu lírico transita entre o engajamento e a metafísica com extrema desenvoltura. O disco deixa o convite à tomada de posição diante dos rumos da humanidade e da existência da transcendência e suas criaturas medonhas. Como William Blake e seu casamento entre céu e inferno, Harppia realiza um casamento estético sem igual entre a terra e o inferno, o prosaico e o demoníaco.

Se, como quer o autor de Mimesis, o propósito é sempre escrever a história, eis um disco que vai fundo no propósito. Não há nada na música moderna que tenha escrito a história tanto quanto Sete.

BIBLIOGRAFIA

AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1998.
BLOOM, Harold. Complete poetry and prose of William Blake. California: California Universit, 1982.
GIL! Eles são sete: uma análise crítica com abordagem objetiva da sagacidade utilizada na composição. São Paulo: 2007. http://elessaoseteseteelessao.blogspot.com
KAFKA, Franz. Lettre au père. Paris: Folio, 2007.
KHAN, Ashley. A Love Supreme: a criação do álbum clássico. São Paulo: Barracuda, 2007.
SOPHOCLES. Ajax. In.: Théatre Complet. Paris: Flammarion, 1964.

2 comentários:

Gil! disse...

Nossa!!!

Uma analise perfeita dessa obra emblemática que é o disco 7.

Vou aguardar ansiosamente a análise dos outros álbuns.

Cibele disse...

Gil, a idéia da análise da obra veio após a leitura seu brilhante artigo. Podemos transformar o Harppia em cânone! A luta continua!

(Você tem mais medo do grande Leopardo? Hahahahahah).